08 março 2012

98 anos do «dia triunfal» da vida de Fernando Pessoa (1914)

Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. [...]

[...]

Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos). Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.

(Fernando Pessoa, Correspondência (1923–1935), 162, pp. 340–341)



Diversos heterónimos e personagens pessoanas
Cartoon de Rui Pimentel (1988)


Notas:
  1. Teresa Rita Lopes (Pessoa por Conhecer, vol. I, pp. 167–169) lista 72 dramatis personae pessoanas, isto é, personagens do «romance-drama-em-gente» criado por aquele «que brincava a ser muitos». Dois dos nomes (truncados) apresentados por Rui Pimentel não constam dessa lista: “César Augusto” e “Hermínia”, este último com muitas reservas da nossa parte, pois as letras são pouco mais do que vestigiais (sendo esta a única possibilidade que nos ocorre como compatível com o pouco que se lê).

  2. Teresa Rita Lopes (op. cit., p. 172) refere o facto de 72 ser o número de discípulos de Cristo (Lucas 10:1; algumas versões referem 70 e não 72, indefinição numérica habitual na mística judaica); a autora faz ainda inúmeras referências (por ex., pp. 83, 160, 163) à aspiração de Pessoa a ser «toda a gente» e à relação disto com Deus («Deus é toda a gente»), no fundo, a aspiração a ser Deus («Quanto mais personalidades eu tiver [...] Mais análogo serei a Deus»). No entanto, parece escapar a esta autora um facto importante: na tradição cabalística, 72 são precisamente os Nomes de Deus.

  3. A lista de Teresa Rita Lopes inclui personagens correspondentes a diferentes níveis de despersonalização: os heterónimos aceites por Pessoa como rigorosamente tal (Caeiro, Reis e Campos) e semi-heterónimos (Soares, Mora); tradutores e divulgadores estrangeiros da cultura portuguesa em geral e da obra de heterónimos pessoanos em particular (Search, Crosse); autores diversos (ensaístas, críticos literários, poetas, contistas, jornalistas...), de quem existe alguma obra, ainda que fragmentária; colaboradores dos “jornais” da infância e juventude; autores fictícios referidos nesses jornais; poetas revelados em comunicações mediúnicas... Teresa Rita Lopes não incluiu na lista Fernando Pessoa ortónimo nem «conhecidos inexistentes» como, por exemplo, o capitão Thibeaut ou o Chevalier de Pas, adoptando o critério de apenas listar aqueles em que «o brincar a ser muitos atingiu o nível da escrita» (p. 173). No entanto, alguns autores fictícios do tempo dos jornais de infância apenas são referidos enquanto tal (incluindo título das supostas obras), não havendo provas de que Pessoa chegou de facto a escrever em nome deles; por outro lado, Pessoa afirma ter escrito cartas a si mesmo em nome de Chevalier de Pas (ainda que essas alegadas cartas não sejam conhecidas).